Arquivos, sujos quintais com tesouros. (1)
Isso se deu na recepção da obra de arte, mas não apenas. É a marca determinante da experiência urbana (2). Mergulhado na multidão e sobrecarregado por uma miríade de estímulos sensoriais, muitos deles óticos, resta ao homem moderno dirigir sua atenção para um ou outro desses estímulos – aquele que, porventura, consiga sobressair-se em meio à profusão de outros tantos.
Se isso foi o que Benjamin observou sobre a Paris de seu tempo, o que dizer de uma megalópole como São Paulo?
O fato é que, contemporaneamente, ainda podemos reconhecer em nossa experiência muito do que Benjamin apontou: somos envolvidos por um fluxo que raramente nos permite um contato mais profundo com as coisas. Andamos, na maior parte das vezes, apressados, desatentos, acostumados. Sem tempo e sem disponibilidade emocional para tentar quebrar o tráfego acelerado que marca a experiência urbana.
Diante dessa circunstância, duas questões me parecem fundamentais.
A primeira: se nosso olhar é seletivo, e atentamos apenas para os estímulos que conseguem se sobressair, o que seria aquilo que deixa de ser visto?
A segunda: esse modo – desatento e superficial – de relacionamento com a cidade não acabou por contaminar outras esferas de nossa experiência?
Afinal, para o que não olhamos? O que deixamos de ver?
Não olhamos o velho, o sujo, o perdido, o pequeno. O que está na valeta, nos esgotos, no lixo. O que está na gaveta. O que não faz diferença. O que não tem serventia. O desbotado, o indefinido, o que deixou de ser. O que está na margem, o que está na sombra. O arranhado, o pouco, o rasgado.
As “pobres coisas do chão mijadas / de orvalho”, como diria o poeta Manoel de Barros (3).
De todas as esferas que se ressentiram desse modo de olhar e sentir, a meu ver, a que mais tem sido atacada é a memória – pessoal e coletiva.
Desatentamente lidamos com o passado e com as marcas que ele deixou. E, assim, vemos, com alguma estupefação, prédios históricos serem “devorados” pela ânsia por lucros e acervos pessoais e coletivos serem esquecidos em gavetas de armários ou em museus.
É por isso que meu olhar se volta para meu acervo pessoal: para extrair o que nele ainda há de vida. O que nele ainda dialoga com o que sou.
Como um flâneur, que mergulha na multidão para nela viver o contraponto da desatenção, pretendo mergulhar no meu acervo familiar, que se encontra, como tantos outros, em situação de gaveta, na certeza de que ali, naquele sujo quintal, pode se esconder um tesouro.
Observação: o título foi apropriado do seguinte trecho de Clarice
Lispector: “(...) levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa
sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só
descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros.” (“Os desastres de Sofia”. In: Felicidade Clandestina.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.)
(1) Fotografias de meu acervo pessoal, durante processo de higienização.
(2) MARQUES, Susana Lourenço.
Cópia e apropriação da obra de arte na
modernidade (mestrado). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2007.
(3) BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010,
p. 343.